quarta-feira, 23 de junho de 2010

Curto-Circuito do Prazer

É na escassez que a criatividade se mostra primeiro. Os melhores pratos que eu preparei foram aqueles que não seguiram nenhuma receita prévia. O prato do dia seria aquele que imaginasse possível diante dos ingredientes disponíveis.

Estavam ali: três metades de pêssegos em calda, meia lata de creme de leite e outra de leite condensado. Era tudo que se precisava para uma sobremesa de pêssegos mais incrementada daquela da qual as demais metades da lata haviam sido testemunha.

A primeira etapa era picar os pêssegos. A segunda bater no liquidificador calda, creme de leite e leite condensado. Foi quando eu tive a infeliz idéia de aproveitar um envelope de gelatina sem sabor para deixar mais firme a sobremesa.

Nada de errado nisso, aliás, truque dos grandes chefes. Fiel a ideologia do “faça com o que é possível”, não me importei de usar a gelatina sem sabor, porém com cor: vermelha. Um detalhe que não comprometeria a receita. Foi ai que meus problemas começaram. Não me refiro ao resultado, pois os ingredientes desempenharam muito bem seus papéis.

A cada colherada sentia-se o gosto de morango e nenhum gosto de pêssego. Havia um conflito de sentidos. Meus olhos viam pêssegos numa mousse vermelha que meu paladar entendia como sendo de morangos...

Reli o rótulo da embalagem. Minha visão não havia me enganado.

Na interpretação do autor Paul Boom de “Como o Prazer Funciona – A Nova Ciência de Por que Gostamos Daquilo de que Gostamos”, os seres humanos têm uma visão essencialista do mundo e quando interagida com o prazer pode gerar um subproduto indesejável.

O essencialismo, compreendido como a noção de que as coisas têm uma natureza oculta que as define, não é em si um mal. Ao contrário, ele nos leva a ser observadores detalhistas, que tentam ler pistas externas a verdadeira essência dos objetos. Altamente favorável a nossa sobrevivência.

A questão é que muitas vezes o essencialismo produz confusão. Experimentos conduzidos pelo psicólogo social Henri Tajefel mostram que o que pensamos acerca de nossos alimentos altera, às vezes profundamente, a forma como os apreciamos.
Num experimento com especialistas, o mesmo vinho foi rotulado como “grand cru” (de alta qualidade) ou de “vin de table” (ordinário). A avaliação mudava conforme o rótulo. Com a crença errada, somos capazes de nos deleitar com comida de cachorro como se fosse patê de “foie gras”.

Ao contrários dos demais animais, temos a capacidade de antecipar sensações e extrair prazer (ou sofrimento) dessa antevisão.

A mousse vermelha de pêssegos gerou uma espécie de curto-circuito do prazer. Acredite: era de pêssego, mas tinha gosto de morango.
Matheus Mamede

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